domingo, 1 de maio de 2011

A QUEDA DA REPÚBLICA (OU "A REPÚBLICA ACORRENTADA")

Novamente recorro a um texto antigo para atualizar o blog. O artigo que segue é um dos que mais gosto, gerou até mesmo certa repercussão em meu grupo de amigos, na época. Me valeu um emprego temporário, ao qual devo meu primeiro contato com a profissão de "ghost-writer". Foi escrito em 16 de Junho de 2005, na madrugada seguinte ao discurso de Roberto Jefferson na Câmara dos Deputados do Congresso Nacional. Pra quem não reconhece de imediato o nome, Jefferson foi o grande delator do famoso esquema do Mensalão. Todavia, de herói não tem nada: Jefferson denunciou o esquema por razões unicamente pessoais. Quase seis anos depois, o processo criminal do Mensalão está engessado no Supremo Tribunal Federal, e 22 dos 38 réus aguardam salivando o mês de agosto, quando o crime de formação de quadrilha estará prescrito. Considero o Mensalão o esquema de corrupção mais terrível da História recente do Brasil. Não se tratou apenas de (mais um) assalto aos cofres públicos,  mas sim uma tentativa clara do Poder Executivo de controlar o Legislativo. Esse mesmo Poder Executivo que, até hoje, tem a maioria dos Ministros do STF indicados pelo presidente Lula. Ou seja, com fortes indícios de controle também do Poder Judiciário. Não simpatizo com nenhum partido, e não quero tentar convencer ninguém a mudar suas convicções políticas. Mas, francamente, quando a Separação dos Poderes cai por terra, cai também a República. Pra mim isso já aconteceu há seis anos, e ela ainda não se levantou. Um minuto de silêncio, e vamos ao texto.


A QUEDA DA REPÚBLICA (OU "A REPÚBLICA ACORRENTADA")


“Se me acontece alguma coisa, cai a República. Confio em Deus.” As frases são de autoria do epicêntrico deputado Roberto Jefferson, e revelam a excelente retórica do ex-advogado criminalista cuja grandeza do poder de persuasão só é superada pelo tamanho de seu próprio ego. Roberto Jefferson atribui à sua incolumidade pessoal a resistência ou não de nosso sistema de Estado, a despeito da incolumidade do Estado em si. Talvez fosse necessário alertar ao Sr. Jefferson que brasileiros mais ilustres já foram vítimas de destinos mais terríveis, e ainda assim a República sobreviveu.

Mas vamos tentar visitar o cenário proposto pelo deputado. Façamos um exercício de imaginação. 15 de Junho de 2005 será para sempre um marco na História do país. Será a data de óbito não-oficial dessa nobre dama que estampa nosso papel-moeda. A República morreu naquela quarta-feira.
Mas não porque, no dia anterior, um deputado (acuado pelas denúncias de corrupção contra si) resolveu trocar o assento do Réu pelo assento do acusador. Morreu, com efeito, porque nesse dia ficou exposto, explícito, escancarado, mais do que nunca, o quanto é putrefato nosso falido Sistema. Quando começou a convalescença, não se sabe ao certo (alguns falariam em 500 anos atrás), mas a verdade é que o Brasil finalmente alcançou a única certeza na vida: a própria morte. A República caiu, numa análise mais imediatista, vitima dos saques e linxamentos promovidos por aqueles que deveriam defendê-la. Ninguém lhe deu a última honra de carregar-lhe o caixão e dar-lhe um enterro digno. Preferem expor seu cadáver, suas “entranhas podres”, como uma estátua empalhada de um ideal que não mais existe no coração de brasileiro algum. E nem mesmo Ele, o mais ilustre dos brasileiros, aquele em quem Roberto Jefferson tanto confia, pareceu ser capaz de salvar nossa amada pátria.

Entretanto, os vilipêndios cometidos não foram o suficiente. A República não pereceu vítima da violência, mas sim do descaso. Em 14 de Junho foi exposto o quase cadáver. Em 15 de Junho, apesar do odor, ninguém apareceu para reclamá-lo, nem mesmo um único cara-pintada. Brasília não virou palco de manifestações. As ruas não foram tomadas pela população. Não houve vozes altas o suficiente para se fazerem ser ouvidas no quarto de hospital em que jazia a dama. Agonizante, olhando ao redor, vendo que ninguém aparecia para salvá-la de seus executores, a República desistiu, e deu seu último suspiro. No momento do óbito, em Santa Rosa, o presidente da falecida celebrava a diminuição do imposto e um possível aumento do consumo de bebidas alcoólicas. O “homem inocente que seria injustamente feito de réu”, talvez por ser tão inocente foi incapaz de aproximar-se da lamacenta capital federal nesse momento de crise e mostrar que ainda é ele quem administra a paciente. O “inocente”, aquele que há muito já demonstrou não ser o aguardado salvador da pátria, recusa-se a falar ao seu povo, acalentá-lo, e dizer algumas palavras que enalteçam a breve vida da adolescente República (apenas 17 anos, e com 45 rasuras em sua certidão de nascimento). O Chefe do Executivo recusa-se a participar do Governo. Além dele, o Chefe da casa do povo no Legislativo parece mais preocupado em aumentar o seu salário, o dos colegas, em impedir que pessoas que se amam unam-se perante a lei, e em inibir pesquisas científicas que podem salvar vidas (embora a República já esteja além de qualquer salvação). Por sua vez, o Chefe do Judiciário, auto-transformado há pouco tempo em assessor jurídico do Chefe do Executivo (com direito a atendimento a domicílio), também está preocupado com os próprios vencimentos, e não com os vencidos nessa Guerra suja e fétida que há anos assola Brasília.  Os Três Poderes, os Três Pilares da República, foram sistematicamente enferrujados, corrompidos, corroídos, até ruírem. Sem suas pernas, a República resistiu bravamente, mas tombou. Alijado de todo e qualquer processo (político, legislativo, ou governamental), o povo brasileiro tornou-se uma população apátrida, sem saber ao certo as razões de seu banimento, e que assiste pela televisão e pelos jornais à revoada de abutres engravatados que ainda tenta roer até os ossos a outrora farta carne (que acabou não sofrendo cortes, afinal) da finada dama. Testemunhas de um destino trágico, que só perceberam que deveriam agir tarde demais.

Dir-se-á que não vivemos, em verdade, tamanha tragédia. Pois bem. Inegável, então, que a realidade assemelha-se à outra tragédia, uma das gregas. Tal qual o mito do Prometeu Acorrentado, a República, que ainda sobrevive, encontra-se amarrada ao inexpugnável rochedo da Corrupção. Fraca, debilitada, vítima dos caprichos de pretensos deuses, condenada eternamente a ter suas entranhas devoradas diariamente por um terrível monstro, cuja forma de abutre confunde-o com a própria natureza do Rochedo. Tamanha é a crueldade daqueles que a acorrentaram, que todo novo dia fazem nascer novas entranhas, novas instituições, novas reformas, apenas para que a mesma ave rapineira possa voltar a se alimentar. Contemplando o sofrimento daquela que lhe trouxe o fogo da liberdade, o povo assiste a tudo, e tenta, num esforço hercúleo, erguer da justiça a clava forte para liberta-la. Mas a clava é pesada, e os heróis estão cansados, famintos, miseráveis, abandonados, desinteressados. A República agoniza, sem morrer, mas transformada numa paródia de si mesma, num eterno monumento à  maldade, à vilania, ao descaso dos eleitos para governar. Do alto de um monte (ou seria um planalto?), poderosos e intocáveis, os pretensos deuses olham para baixo, acham graça, e voltam a contar o  dinheiro que escorre das veias abertas de sua prisioneira. A cada dia a República se pergunta quando vão finalmente liberta-la. Mas a cada dia, o monstro volta para devorar suas entranhas. E a agonia persiste.

Vítor A. C., 16 de Junho de 2005.

Em tempo: recomendo a leitura do mito de Prometeu , se possível no texto de Ésquilo ("Prometeu Acorrentado", com várias publicações no Brasil). Nos vemos na próxima!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários e críticas desconstrutivistas não serão censurados, mas é provável que eu não entenda. Não manjo nada de arquitetura.