terça-feira, 7 de junho de 2011

A FICÇÃO IDEAL

Em 2002 entrei na faculdade de Direito. Contava eu com 17 anos, recém completados, e nem tão vividos quanto eu gostaria (não sou precoce, apenas faço aniversário no final do ano). Naquela época escolhi o Direito porque sempre aspirei a uma carreira na Polícia, ou até mesmo no Ministério Público. Tive como inpiração meu avô materno, que foi policial civil desde cedo, tendo se aposentado Delegado. Poucas histórias meu avô me contou antes de morrer, sobre seus anos na polícia ou seus feitos, quem sabe, heróicos. Mas era meu motivo particular e secreto de orgulho. Meus pais, a seu turno, sempre ensinaram a honestidade como modo de vida, muito mais pelo exemplo do que pelas palavras. Não precisei ouvir deles que era importante ser honesto, pois suas atitudes falavam por si só, especialmente ao serem confrontados com situações que testavam essa virtude. Era essa minha realidade. E havia, é claro, a minha ficção.



Cresci envolto em histórias sobre heróis, mocinhos, policiais e vigilantes mascarados. Histórias em Quadrinhos, na sua maior parte. Mundos de ficção onde a honestidade ainda fazia sentido, e suas virtudes eram defendidas ao custo da própria vida. Mundos onde o crime não compensava, o bem triunfava, e os maus recebiam o castigo devido. Quase sempre, é claro. Algumas vezes até mesmo os vilões obtiam a redenção, e os heróis se revelavam falíveis. As histórias que me marcaram iam muito além do tradicional maniqueísmo do Bem contra o Mal, o Certo contra o Errado, a Moral contra a Imoralidade. Quer um exemplo? Batman sempre prendia o Coringa, mas o Coringa sempre fugia. E quando fugia, inocentes morriam. Mas Batman recusava-se a matar o Coringa, e era assombrado por todo o mal que seu algoz causava. Batman sabia que deveria matar o Coringa. Mas isso era errado. E para Batman era importante agir certo.

Reparou? Havia complexidade nessas histórias, nesses conceitos. Esse contos serviam, sim, para levar alguns bons valores aos seus leitores. Nada da tradicional lição de moral pronta e acabada, sempre imutável e asséptica. Cresci lendo autores que sabiam propor reflexões profundas sobre a honra, a moral, o caráter, a coragem e, claro, a honestidade. Meu caráter foi se moldando por meus exemplos, e por minhas histórias. Evidentemente, o produto final não chega assim tão perto do produto idealizado. Não sou um homem de moral inatacável, de atitudes irretocáveis, de sabedoria inquestionável. Diriam alguns que nem mesmo ostento honestidade incorruptível. Mas ainda busco esses valores, ainda os considero importantes.

Então, como eu dizia, em 2002 entrei para o Direito, e sonhei ajudar a "combater o crime". Coloco a expressão entre aspas, pois acho que nunca vi em sala de aula, ou na Doutrina, ou na Jurisprudência, ou muito menos na Lei, falar-se em "combate ao crime". Estranhei no começo, mas não era tão ingênuo assim, e sabia que a realidade era muito distante dos meus mundos fictícios. De qualquer modo, decidi me manter fiel aos valores idealizados, pois um cínico disfarçado de realista é, além de cínico, também um hipócrita.

Por volta de meu terceiro ano de faculdade, comecei a estudar Processo Penal e Execução da Pena. Aprendi coisas como Cálculo da Pena, Progressão de Regime, Reincidência, Caráter Ressocializante da Pena, Presunção da Inocência até Trânsito em Julgado, e uma série de outras que não vou fingir que sei explicar com propriedade ao leitor. Para fins desse raciocínio, basta dizer que são mecanismos para que criminosos, mesmo depois de condenados, simplesmente não fiquem na cadeia. E, acredite, o Direito brasileiro está cheio desses mecanismos. Se você procurar nas mídias por "Brasil" e "impunidade" certamente encontrará exemplos práticos.

Não me chocou, contudo, que a realidade brasileira fosse aquela da impunidade dos criminosos. Eu lia os jornais naquela época e, ademais, a realidade sempre é distante do que idealizamos. Me chocou, isso sim, o fato de que a Lei brasileira foi imaginada para favorecer essa impunidade do crime. Cheguei à conclusão de que sequer no mundo idealizado das Leis e das teorias acadêmicas (no mundo do "dever-ser" em contraste ao "ser"), poderia encontrar um eco no meu objetivo de "combater o crime" - com suas merecidas aspas. Por essas razões, minha carreira policial ou ministerial foi abortada em minha mente. Bem verdade que os caminhos da Advocacia Cível se abriram com mais facilidade, mas não é menos verdade que deixei de trilhar qualquer rumo em direção ao Direito Penal.

Apesar de calcado nas minhas memórias, escrevo esse texto motivado por um fato recente dos noticiários jurídicos. Há um mês foi sancionada a lei n.º 12.403, e em 06/07/2011 ela entrará em vigor. Dita lei, segundo juristas ilustres, acaba por inviabilizar a prisão preventiva no país, mesmo se feita em flagrante delito. Salvo melhor juízo, crimes como homicídio simples, homicídio culposo no trânsito, lesão corporal seguida de morte, formação de quadrilha, entre outros, não poderão mais resultar em prisão antes do fim do processo. Ah, e isso também se aplica para crimes econômicos e aqueles contra as finanças públicas (coincidência?). Fazendo um exercício para tentar ler a lei com a tradicional ótica garantista da nossa Constituição Federal, também se pode supor que a Prisão Preventiva só será admitida depois de frustradas ao menos nove medidas cautelares previstas na lei n.º 12.403 que, na prática, são impossíveis de ser fiscalizadas pelo Estado. Resultado? Só teremos prisão após esgotada toda e qualquer possibilidade de recurso no processo penal. Na realidade do Judiciário brasileiro, isso equivale a dizer que demorará anos, talvez uma década inteira, até que o criminoso seja afastado da sociedade pela prisão. Isso, é claro, se alguém ainda acreditar que alguma prisão será efetivada depois de tanto tempo. Mais uma lei brasileira que acha que o problema está na Pena, e não no Crime. Mais uma lei que faz prevalecer os direitos individuais de criminosos, em detrimento do direito coletivo à segurança daqueles que teimam em permanecer honestos.

Em conclusão a essa longa divagação narcisista, tenho a dizer que, passados quase 10 anos, minhas perspectivas sobre o mundo idealizado por nossos mandatários eleitos só fazem piorar. Mesmo que a Lei seja cumprida no Brasil, o que não ocorre com tanta frequência, ainda assim criminosos continuarão a solta, roubando, matando, violentando os cofres públicos, dentre outras barbaridades. Tudo até que essa quase mítica figura do Trânsito em Julgado seja alcançada - se for alcançada. A Lei no Brasil é uma ficção, disso eu já sabia. Mas parece que nem mesmo nessa ficção há esperança de "combater o crime".

Assim sendo, de ficção por ficção, fico com as Histórias em Quadrinhos. Se meu filho me perguntar por que o crime não compensa, direi a ele que é por causa do Batman. Infelizmente não poderei dizer que é por causa da Lei.

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Chove aqui, e o noticiário de hoje não é mais animador do que o de ontem. Mas afinal, a chuva não é tão rara, e as notícias ruins estão sempre lá para quem quer procurar. As boas nem sempre, é verdade, mas isso também não é novo. Talvez seja melancolia, talvez puro pedantismo, talvez eu simplesmente tenha disposição apenas para escrever em tom de gravidade e desesperança. Ainda assim, peço a licença do leitor por ter postado mais um texto não tão alegre, e um pouco mais narcisista do que o habitual.  Prometo num futuro breve escrever textos mais leves, quem sabe cômicos, aventurescos, ou então edificantes. Mas hoje chove, e há notícias bastante desanimadoras.

Um comentário:

  1. Te amo meu filho. Aprendi a aprender com meus filhos. É uma linda escola. Beijos

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Comentários e críticas desconstrutivistas não serão censurados, mas é provável que eu não entenda. Não manjo nada de arquitetura.